domingo, 6 de janeiro de 2013

Pará segue o campeão da Doença de Chagas no país

Uma fraqueza sem fim, mal estar, febre. Diante dos primeiros sintomas que poderiam ser atribuídos a praticamente qualquer doença febril, o militar Manoel Santana desconfiou da hepatite. Frente ao primeiro médico visitado, o diagnóstico suspeitado por ele foi confirmado, porém, de forma equivocada. Sem a diminuição dos sintomas mesmo com a medicação para hepatite, foi apenas diante de um segundo profissional que Manoel teve conhecimento da verdadeira doença que insistia em enfraquecer seu organismo. “O outro médico mandou eu fazer o exame e constatou que era Doença de Chagas”.
Morador do município de Abaetetuba, Manoel não é o único acometido pelo parasita presente no organismo do inseto conhecido como barbeiro. Instalado em uma casa de alvenaria na área urbana do município, o militar até hoje tenta se convencer do meio pelo qual ele e o filho de 25 anos contraíram a doença. “Não sei de onde contraí. O meu quintal é todo limpo, cuidadinho... acho que não tem barbeiro”.
Apesar da dúvida relacionada à presença do inseto na casa da família, a suspeita maior é que a doença tenha sido adquirida não pela picada do inseto, mas pela forma mais comum no estado brasileiro que soma a maior parte das pessoas contaminadas com a doença: a transmissão oral. “A gente toma açaí todos os dias. Não pode faltar”, revela, mesmo com certa resistência em acreditar que a contaminação possa ocorrer pela não higienização correta do fruto consumido no município. “Tem dois lugares que batem açaí que todo mundo diz que são os mais corretos [na higienização do fruto]. Depois que eu descobri que tinha Doença de Chagas, eu só compro lá”.
Responsável por mais de 80% dos casos de Doença de Chagas no Brasil, o Estado do Pará é o campeão em incidência no país, mas o quadro pode ser ainda pior. Com a notificação de 146 casos apenas no ano de 2012, a estimativa é que para cada caso de Doença de Chagas registrado existam mais dez que ainda não foram descobertos. Apesar do impacto que os dados divulgados pela Secretaria de Estado de Saúde Pública (Sespa) causem, para a coordenadora estadual de Controle da Doença de Chagas, Elenild Góes, os números são menos alarmantes do que parecem. “Esse dado [que aponta que 80% dos casos serem registrados no Pará] é importante, mas não chega a ser alarmante porque nós somos o único estado na região amazônica que tem um programa de Doença de Chagas que funciona, que trabalha a assistência, que trabalha a vigilância do barbeiro, que trabalha a vigilância epidemiológica”, afirma. “É um pensamento errado você imaginar que fazendo essas ações de controle da doença a gente vai ter menos casos. Na verdade, fazendo isso, a gente identifica os casos que antes não seriam percebidos. Esse número deve aumentar ainda”.
Destacada sempre em primeiro lugar no ranking dos municípios paraenses que notificaram mais casos da doença, com 21 notificações no ano passado, Belém perdeu o posto para a cidade natal de Manoel, Abaetetuba, onde os casos da doença já chegam a 62 no mesmo período. Para a coordenadora, os altos registros no município também são atribuídos ao trabalho que vem sendo desenvolvido pelo programa desde 2006, quando foi criado. “Geralmente, nos perguntam se o Estado vai fazer alguma coisa diferente lá, já que Abaetetuba está com um número grande de casos. Não é necessário. Abaetetuba consegue diagnosticar muito bem os casos de Chagas, faz uma excelente investigação, tem uma equipe que consegue identificar os casos e fechar batedores irregulares”, afirma. “Atualmente, nós temos três bairros em Abaetetuba com casos, mas, ao mesmo tempo, isso é fruto de um trabalho, de uma coordenação que funciona muito bem”.
 
Um desafio nas vendas do açaí
Em uma rápida andada por Abaetetuba, não é difícil entender um dos motivos que influenciam o grande número de casos. Logo com os primeiros raios do sol, a movimentação na feira, à beira do Rio Maratauíra, já é intensa. De uma das muitas casas de madeira que estampam em sua fachada a placa vermelha característica dos pontos de venda do fruto, o líquido espesso ganha um aspecto diferente. Presente em muitas cuias dos que às 7h já consumiam a bebida quente, a primeira dose de açaí do dia vinha através do mingau. “O açaí é muito consumido. Se não tiver açaí, tem abaetetubense que não almoça”, afirma a vendedora de mingau de açaí, Joanete
 
Macêdo.
Acostumada com o barulho da máquina que bate o fruto e extrai a polpa de cor característica desde a infância, ela é a prova da grande quantidade de açaí consumida no município. “A gente tem que tomar açaí todo dia no almoço e na janta. Desde que me entendo por gente, vejo meu pai e minha mãe batendo açaí”.
Antes que seja necessário relacionar as condições de higienização do fruto à doença de Chagas, Joanete se adianta. Com as fases do ‘branqueamento’ – como é chamado o processo recomendado para a eliminação do parasita causador da doença do açaí – na ponta da língua, ela garante que cumpre todas as etapas, apesar da não apresentação do termômetro ou da peneira, equipamentos indispensáveis no processo. “Tem que escaldar, senão não presta”, afirma. “De vez em quando, fazem palestras e reuniões com as pessoas que batem o açaí. A gente ainda não está totalmente adequado porque ainda vamos mudar aqui desse ponto [montado em uma casa de madeira]. A gente ouve falar que tem caso de Doença de Chagas aqui no município, mas não perto da gente”.
Com a touca protetora devidamente instalada na cabeça de cada visitante, o comerciante José Francisco da Silva também faz questão de evidenciar os conhecimentos adquiridos através da orientação da Vigilância Sanitária. Sem que seja necessário muita cerimônia, o responsável pela venda diária de 60 a 70 latas de açaí para os abaetetubenses não se incomoda em demonstrar todas as fases do branqueamento. “Passamos primeiro nessa peneira, colocamos no cloro de 15 a 20 minutos, lavamos em três águas e aqui [direciona o termômetro para o recipiente já tomado pela fumaça da água quente] fazemos o branqueamento. Quando o termômetro está marcando 80º, nós colocamos o açaí por 10 segundos para depois bater”.
Há doze anos no ramo, ele reconhece que só começou a fazer todo o processo após a orientação recebida. Ele, que conhece a lida com o fruto que chega à cidade através das muitas ilhas do município, também não deixa de recomendar. “Infelizmente, tem muita gente [em Abaetetuba] que ainda não faz isso. Antes, quando eu não conhecia, o açaí só era lavado mesmo e colocado naquela água tradicional que não chega nem a 50º só pra amolecer”, afirma. “A Vigilância faz cursos, mas parece que o povo não acredita”. Abaetetuba: vilão nas matas, apesar da incidência urbana
 
Na outra ponta do processo, o coordenador da Vigilância em Saúde da Secretaria Municipal de Saúde de Abaetetuba, Victor Viana da Graça, diz já não sentir tanta resistência dos batedores de açaí quanto às orientações que lhe são repassadas para o manuseio correto do fruto. Ainda assim, para ele, o mais importante é garantir que os batedores coloquem em prática o conhecimento que já têm. “O açaí acaba sendo o vilão porque é muito consumido, mas a contaminação pode se dar por qualquer alimento que não tenha a higienização correta”.
Apesar de confirmar que a maior parte dos casos notificados no município diz respeito a pessoas que moram na região urbana de Abaetetuba, ele destaca que a maior incidência do barbeiro se dá nas regiões de mata.
 
“Através do controle do barbeiro [feito pela equipe do próprio município], foi possível identificar áreas de risco. O barbeiro está, normalmente, nas ilhas e estradas onde há maior quantidade de palmeiras. O município é muito grande. São 73 ilhas”, informa. “O açaí é cultivado nas ilhas, mas consumido na cidade, por isso a maioria dos casos está na área urbana”. (Diário do Pará)

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